Buscapé

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Mães de carne e osso


Sim, existem mães perfeitas.
Insistentemente magras, endeusadas, 
santas, heroínas, mitificadas.
Consagradas ao posto de mulher-maravilha ou elástico, 
horário nobre no paraíso.
Tão compactadamente cheias de pó compacto, 
photoshop, barrigas de plástico.
Abra o jornal e lá estão elas: 
impecavelmente perfeitas nos anúncios publicitários,
vendendo de perfume a geladeira para o Dia das Mães.
Desligo a TV e me olho no espelho. 
Cansaço e alegria.
Labuta e correria.
Colo e coragem.
Amor e ancoragem.
Reza e anjo da guarda.
Não sei mais quantas linhas de expressão.
Cada uma um significado, 
uma noite perdida, uma vida inteira ganha. 
Ô. Presente que não se encontra 
em loja nenhuma do mundo. 
Luz que não se acende com mil camêras,
mas dentro dessa mãe que é de carne e osso.
Sim. Se você não sabia, mãe é de carne e osso.
Erra e tropeça também.
Borra a maquiagem, quebra o salto, 
se perde nos seus achados,
agenda reuniões diárias com Deus.
Ainda bem que é de carne e osso.
É dessa combinação que nascem 
os abraços mais apertados, 
amorosos, verdadeiros, inteiros, 
cheios de afeto e de uma ligação única, 
que propaganda nenhuma jamais conseguiu inventar.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Apaixonadamente


Mania essa de viver apaixonadamente. 
De transformar cada gota de suor, sonho, 
travessia em grito de gol.
Alçar vôo, romper o chão. 
Roubar a lua para pôr nos olhos. 
Audaciosa e escancaradamente.
Deixar à mostra essa alegria que te move, 
te acorda, te faz.
Fazer o para-casa, sair de casa, 
mostrar ao mundo a sua cara.
Hospedar o Paul, lotar o estádio, 
fazer o melhor café do mundo.
Pura energia, sintonia, 
música que não desafina.
Voltar a enxergar. 
Voltar a andar, mesmo que numa cadeira de rodas.
Colocar emoção num prato de arroz com feijão. 
Pimenta a gosto.
Qualquer que seja o motivo é motivo.
Se alguém inventou a monotonia, que desinvente. 
Que tente.
Você não tem tempo a perder. 
Você não precisa ter medo de ser. Seja.
Viver apaixonadamente, lembra?
Taquicardia, perna bamba, tormento de encantamento.
Te dou dois segundos pra roubar a lua.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Rotina


"Um, dois, feijão com arroz."
Fez onde, esse curso de robô?
Roubou seu tempo, economizou conversa jogada fora, 
suas estrelas deixou de contar.
Toca o despertador. Começa o noticiário.
Árido o dia que termina assim.
Tão no automático. 
No imediático, se é que existe palavra assim.
Brinca de parar o tempo, menino.
Tanta coisa pra fazer, alma trancada no sótão.
Sai da catatonia, fura a monotonia 
como surfista quebrando onda.
Vai morrer de amor mas não morre na praia.
Sai do padrão, faz careta pra escuridão, 
acende os olhos para não perder de vista 
a paixão que há tempos te ronda.
Compra logo uma lanterna roxa e sai por aí.
Vai bater ponto na vida.
Faz serenata, essa coisa tão antiga.
Vai contar causos de pescaria.
Tricotar com a avó. 
Ou teclar, bater um blá, sei lá.
Acende uma lareira e junta os amigos.
Dá férias pro chefe e prepara panqueca de abacate
com pimenta rosa.
Mas troca essa voz robótica,
esse jeito previsível de fazer tudo igual sempre.
Desde sempre é que não foi. Foi?
Desrobotiza. Miraculiza. Externiza.
Xis. Sorria. 
Você não está sendo filmado.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Ode ao Dia dos Namorados


A cena é linda, eu diria perfeita. 
O namorado pára o carro em uma rua tranquila, 
venda os olhos da namorada 
e coloca uma música que fala de amor.
De repente a rua é tomada por casais de namorados 
passeando de mãos dadas, sorrindo enamorados
entre beijos, abraços, flores e balões.
(Armação criativamente inventada, 
famoso flashmob dos dias de hoje.)
Os olhos outrora vendados não acreditam no que vêem.
Choram de emoção, pupila dilata, fala falta.
O clímax chega na forma de uma caixinha preta 
de veludo que delicadamente se abre, 
mostrando duas alianças de ouro.
- Quer se casar comigo?
(...)
- NÃO.
(...)
Não?!?
A cena é inesperada, eu diria imperfeita.
Imperfeita como a vida é, afinal. 
Plena de encontros e desencontros, 
amores correspondidos e doídos, 
porções inteiras de sim e não.
É com a recusa de um pedido do casamento 
em pleno 12 de junho que começa o filme 
"Odeio o Dia dos Namorados".
O nome é curioso. Chama atenção 
pelo forte antagonismo do verbo utilizado
em relação a uma data tão cheia de amor pra dar.
Aí você torce o nariz. Esvazia-se de toda 
e qualquer pretensão já prevendo 
uma tola comédia romântica cheia de clichês.
Lêdo engano.
"Odeio o Dia dos Namorados" é leve, 
engraçado, ficcional e também muito real.
A mulher que não aceitou se casar 
foi um dia a menina que botava fones de ouvido 
para não ouvir a briga dos pais.
A publicitária viciada em trabalho 
viveu um dia abstinência de amor
nas suas decepções de adolescente.
Um acidente de carro pára tudo, movimenta tudo, 
dá a ela a oportunidade de voltar no tempo.
Pausa providencial, Divina Providência 
dando uma explicação a tudo.
Depois de tanta "viagem", nasce o slogan 
do bombom Sonho de Valsa: "Alimente o seu amor".
Como ex-redatora publicitária, adorei. 
Era o slogan que eu gostaria de ter criado.
Como psicóloga, ouvinte frequente das trincas 
que muitas vezes esfarelam as relações afetivas, validei.
O amor - a despeito de todos os traumas, 
vazios e antagonismos - tem fome e sede, 
necessidade constante de cuidado e nutrição
para não correr risco de inanição.
Deve ser por isso que os restaurantes 
fazem fila no Dia dos Namorados.
Oficialmente os casais ficam ávidos 
de rua, lua, vinho, ninho, 
famintos que estão de amor.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Engano


Por engano dois bebês são trocados 
logo após o nascimento.
Por engano, susto, pânico eles se misturam no refúgio, 
nascidos que foram em meio ao bombardeio.
O menino israelense ganha o colo da mãe palestina.
O menino palestino ganha o colo da mãe judia.
Os meninos crescem, a verdade aparece 
com a força de uma granada. 
Apesar das diferenças tão abissais e gritantes, 
os dois filhos se encontram.
As duas famílias se reúnem para jantar.
Os olhares se cruzam.
Os lábios entoam uma canção familiar.
As raízes se ampliam.
As fotografias falam.
A tocante ficção de "O Filho do Outro"
é vida real na história de algumas vidas.
Por engano se cometem erros, 
desastres, equívocos sem fim.
Por pertencimento rompem-se barreiras, 
desfazem-se mal-entendidos, 
se desmancha um muro inteiro.
A sensação de pertencer a uma família, uma pátria, 
uma barriga ou a um time de futebol 
fica desde sempre registrada 
na alma, no sangue, na carne.
Impressão digital, profundamente emocional, 
que guerra nenhuma jamais apaga.